segunda-feira, 2 de abril de 2012

MEMORIAL


Comprei ontem, em uma loja do centro da cidade, uma pequena caixa de música. É estranho, mas ao ouvir o som delicado e até melancólico, tive a nítida sensação, ou antes, a alucinação de estar cruzando a rua onde moravas. Eu era jovem e tu eras jovem. Havia árvores de onde caíam gotas frias da água da chuva que se acumulara; havia o longo muro da escola onde eu escrevi, com tinta spray e olhos marejados, o teu nome divino e as palavras “eu te amo”; havia a cor azul da janela da tua casa e a cor azul do céu no dia em que eu te vi pela primeira vez. Havia - meu Deus, como me lembro - a cor negra dos teus cabelos, a cor negra dos teus cabelos.
Só hoje me dou conta daquela imensa felicidade; só hoje me dou conta que a felicidade está sempre na distância desses dias periféricos. Dias luminosos e de preocupações tolas; de mães que gritam chamando para o jantar; de furtivos olhares crispados de luzes e pequenos poemas colhidos como flores do peito. Só hoje me dou conta desse arrebatamento. Eu que endureci
e me tornei pesado, de pesado passo. Ouvindo o tilintar dessa coisa simples que é uma caixinha de música, parece que caminho agora com a leveza, não dos meus, mas daqueles teus passos. Leves passos de menina, que ao invés de gravarem no chão alguma pegada, iam escrevendo pelo caminho a palavra “amor”.

Gladys Maldaun

3 comentários:

  1. Sempre admirei, com uma pontinha de inveja, esse seu jeito fácil e doce de desenrolar as palavras em pequenas em pequenas canções e aquarelas. É assim,faz bem aos ouvidos quando leio em voz alta e aos outros sentidos quando o texto me faz sentir um expectador presente na cena.
    Quero continuar invejando...

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    1. Velho e querido parceiro, nada há para invejar. Quanto a ser espectador na cena, principalmente nesse texto, saiba que é como se você andasse ao meu lado naquelas ruas antigas e, na verdade é mais o amorosíssimo Sapo quem fala do que eu, que era mudo e taciturno. Um grande abraço. Você é que é um homem de dar inveja.

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  2. O poder mágico das caixinhas de música e a delícia da sua escrita...que lindo encontro!

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