terça-feira, 27 de junho de 2023

ARISTÓTELES

Sobretudo, sou estrangeiro (ό ξένος)

nesta cidade ou em outra
qualquer (οι πόλεις).
Aos outros, com dificuldade, me dirigo,
com quem me encontro no mercado,
na taverna, na igreja,
(στό δρώμο) na rua,
com dificuldade, não sem deixar evidente
que não sou daqui,
o meu sotaque,
o modo como me visto.
a sílaba longa que emprego para dizer
eu.
Obviamente, os meus concidadãos
devem suspeitar
que não me interesso pelas suas miseráveis
vidas,
enquanto meus olhos (τά μάτια μου) perscrutam
incontáveis mundos
e a terra infinita
debaixo dos meus pés
(κάτω από τα πόδια μου).

 

segunda-feira, 20 de março de 2023

NO TÚMULO DE HUGH DE LINCOLN

Setecentos anos passados,
 - nunca foi senão o anseio mesmo pelo sangue
sempre em vão e em quantidade derramado -

Não podendo devolver-lhe a vida 
brutalmente tirada pelos cristãos, 
A santa madre igreja católica
faz inscrever 
nessa placa de frio metal incrustada no mármore frio:


"Esta tumba guarda os restos do jovem Hugh, 
que não cometeu crime algum 
nem ofendeu de forma alguma
a comunidade cristã do condado de Lincoln". 
 
É da natureza do crente crer sem, contudo, buscar a verdade.
 

 
 
 


MORS OMNIA SOLVET

Morrer na solidão,
talvez a única eutanásia.
Nos não permitam os deuses esse acabamento,
como um velho elefante deixado para trás
pela manada indiferente,
ou que dela se afasta,
lento,
pesados passos sob o sol escaldante.
O decrépito leão
a servir de pasto às hienas,
o tigre esquálido, já mudo,
antes altivo felino.
A solidão das pradarias,
dos rios perenes.
do vento a balançar
as folhas das grandes árvores.
As imorredouras estepes verdejantes.
Padecer no silêncio.
Talvez, a verdadeira eutanásia,
o que nos deram os deuses ausentes.
Klimt - Morte e Vida

 

domingo, 26 de fevereiro de 2023

PASSEIO PELA ALAMEDA DE TÍLIAS

Quando senti as primeiras gotas de chuva, frias,
só então reparei nas nuvens,
negras,
que havia muito formaram-se e sombreavam,
imensas,
a alameda agora esquecida.
 
As nuvens,
nelas cada um vê o que quer;
umas com homens se parecem,
espantados,
outras, outras coisas lembram diferentes.
 
O tempo, as folhas caídas,
o outono em meu semblante.
A cotovia levantou voo,
nem ainda eu pude vê-la pousada,
marrom,
no galho do velho cipreste,
que sobre a tarde se debruçava.
Claude Monet - Ile Saint-Martin - Detalhe

 

terça-feira, 12 de abril de 2022

PARA ELA

Elegante e bela e jovem.

Há um tempo, apoiada a cabeça nos braços, 

adormeceu.

É certo que está cansada.

Bem assim eu próprio, 

a caminho do subúrbio 

nessa composição de trem.

É muito provável que nunca mais a veja,

e é certo que a nunca vi antes,

nem neste nem em outro caminho;

neste ou nenhum outro tempo.

Dela nada quero, nada pretendo.

Já me foi dado tudo.

Esse instante de encantamento.

A juventude que passou por mim,

relâmpago,

faróis do trem no sentido contrário,

e essa despedida.


Claude Monet - La gare Saint-Lazare- - 1877


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

A NATUREZA DO BASALTO

Deixar a praia,
a língua d'água sobre a costa escarpada.
Dentro do corpo telúrico,
da pedra porosa e funda,
da escuridão,
dentro da áspera noite de pedra e seca,
ali, nervos das profundezas,
sangue das cavernas,
ali nossa vida e origem,
o amor de ferro,
o coração basáltico,
o fogo que forjou o coração.
Port D'Aval - 1883 - Claude Monet

 

terça-feira, 25 de maio de 2021

INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS

Para Marina Ruivo

A volúpia e mesmo a melancolia voluptuosa, 

entre ocres e lúgubres cores depravadas.

De qualquer modo, não cairíamos

e qualquer gesto estava suspenso.

Suspenso também o tempo, inintelígel.

Não se suspende o espaço, este

criado pela palavra de um deus atônito,

ou pelo grito, 

única expressão do teu corpo sobre o meu



.

 




quarta-feira, 19 de maio de 2021

UXOR

Toma a minha mão

   ainda agora trêmula.

Já não me aquece o sangue 

      o vinho que da garrafa

se desprendeu

   e dela

     não se derramava 

qualquer líquido perdão.

      Procuro a tua face, o teu rosto, 

           para sempre

                    santificado.

Eu ergui altares e incensei 

       a câmara iluminada

e fiz preces

     e recolhi, aflito, 

as pétalas das horas.

 Hoje, sou o corpo 

    alijado das coisas do mundo,

    e há pedras acesas

               com o fogo frio da ausência.

A leitora - Jean-Honoré Fragonard
Jean-Honoré Fragornard - A leitora

 

segunda-feira, 1 de março de 2021

CIRRUS

Por vezes, pareço-me comigo mesmo,
tal como costumeiramente me faço representar,
segundo as minhas crenças...
Há, nesta hora, 
de sol a pino e meio-dia, 
ainda que timidamente e esparsas,
como a tingir com delicadeza
um céu de infinito azul e profundo,
umas quantidades das altíssimas cirrus.
Olho, o corpo estendido, e vejo:
Deixei na tarde incipiente de compreender.
Nem mesmo tenho a me compor
o teu olhar,
que me abandonou.
 

ROSA DO CÉU

O que vai ser de ti?
A rosa do céu, crescente,
desabrocha.
É tão tarde, Luli!
Penso em ti.
A noite desce sobre o casario,
sobre
as altas antenas
desce.
Edward Hopper - Morning sun