quarta-feira, 13 de junho de 2018

ORAÇÃO DE SANTO ANTONIO

Antonio, pequeno Antonio,
Antonio amoroso e forte,
traze o amor,
o perdido amor, o impossível,
o eterno amor
o cálido e febril amor das crianças,
traze,
por obséquio,
o grande amor do menino,
a fala amorosa dos peixes,
as marinhas palavras,
traze,
pequenino, 
pequenas pedras de Pádua, polidas,
os perfumados lírios,
as rosas do norte, perfumadas,
traze
minha amantíssima mulher,
meu amantíssimo homem,
a rútila estrela
o ruivo sol,
traze o amor,
o perdido amor, o impossível,
o eterno amor
o cálido e febril amor das crianças.
 
Claudio Coello - La visión de San Antonio de Padua


 










 

sexta-feira, 30 de março de 2018

ECCE HOMO

São profundas feridas
o látego, a maça, a pedra,
o espinho,
mesmo a flor fere fundo,
o amor dos homens,
veneno, vela, vida.
Eis o céu sem fim,
a distante estrela inalcançável,
perdida no tempo.
Parte da parte da parte,
eis os pés dilacerados
partidos os braços
o fígado a alimentar as aves
carniceiras.
Eis o meu amor inútil,
as horas crestadas de morte
o vinagre
o peixe apodrecido.
Córregos a desaguar 
em lagos secos
água fria na pele sedenta
da terra.
Eis os vales inférteis, 
as mansões despedaçadas,
as estradas interrompidas.
Eis o suor, as glândulas
sudoríferas, 
os pruridos, a febre, 
a bacia de cobre,
o perfume
Lavemos as nossas mãos.
Quentin Massijs - Ecce Homo





terça-feira, 20 de março de 2018

JOSÉ DE ARIMATÉIA

Ao entardecer,
enquanto os corvos sobrevoam a colina,
não crer na morte não é, em absoluto,
crer na vida,
aqui é preciso olhar com cuidado
e ouvir atentamente,
pois não se reparte o pão
numa ultima ceia, 
senão
que o próprio corpo é dividido,
não se serve o vinho
senão
que o próprio sangue é servido
(tomai e bebei).
As aves, os vermes, os cães, as hienas.
Tomemos em nossos braços 
o corpo sem vida
e o guardemos numa gruta.
Que se peça ao rei 
o que sempre foi negado
o pão, o vinho, a água, os frutos.
Longe, com os trapos que ainda lhe cobrem,
se deve depositar o corpo sempre vivo
e ouvir a voz da noite de chumbo
e cantar o hino do dia seguinte,
guardar a palavra do tempo,
o que nasce e morre e renasce
e torna 
ao pó,
como o peixe, o feixe de trigo.
O sepultamento de Cristo - Ticiano








domingo, 11 de março de 2018

O DILÚVIO

De todos os animais,
dos que vivem na terra, dos que ocupam os céus,
dos que povoam as águas, 
um apenas e semelhante ao criador é o perverso,
imagem invertida de um espelho,
apenas este é capaz de tornar imperfeito
o que fez a perfeição
tornar muda a palavra que plantou o jardim
e teceu o vestido das águas
e coseu as inumeráveis estrelas no céu.
Por isso, que se varram das nações
toda a escória podre e perversa,
todos os que podem mirar o dentro
e perder de vista a imensidão dos mares,
os que se puseram a parir com dor,
arar a terra, trabalhar sob o sol sem proveito,
enganar o pai, matar o irmão, 
ferir de morte a mãe inconsolável.
Que, de novo, as águas se confundam
e proliferem as espécies aquáticas,
os minerais se liquefaçam,
e não haja nenhuma estação
nem estuário nem porto nem novos frutos,
nem os murmúrios da mata e os cantos do abismo.
Contudo, tudo não pode ser o silêncio sempiterno
e a imobilidade perene e a tristeza 
da solidão inominável do inominado.
Um, sua mulher, seu filhos,
miseravelmente é preciso preservar e
instruir. Fazei um grande barco, uma arca,
recolhei em pares os bichos, macho e fêmea,
os ferozes e os mansos, os que rastejam,
os peçonhentos, os grandes e os pequenos
e, por um tempo, vagai com eles sobre a imensa
massa líquida,
até que no céu se estampe um arco de cores,
e se faça uma aliança, 
como um acordo,
se não tornará a escuridão sempiterna,
a mudez escura do indistinto,
que uma vez cometeu o pecado da vaidade.
Dilúvio de Improvisação - W. Kandinsky

segunda-feira, 5 de março de 2018

SIMÃO DE CIRENE

A colina está repleta já de cruzes
e muitos carregam pesadas traves
enquanto a multidão cobre de impropérios
e enxovalhos os condenados.
Há sempre uma sede de sangue,
uma infinita sede.
Nem o Nilo nem o Jordão nem o Tigre,
O Eufrates
nem mesmo o poço de Jacó 
jamais puderam saciar.
Ora, que atirem pedras, 
que se dilacere toda a carne,
que se corte a garganta de todos os cordeiros
e que se possa espargir toda lágrima
todo sangue
e marquem-se as vestes de branco linho.
(Quem se importa com o sofrimento?
O alheio sofrimento?)
Quem, afinal, quer beber água e viver
eterna e mansamente?
Que água tão viva de um rio tão perene?
Um sol vermelho tinge as casas abandonadas,
correm as crianças entre gritos e mulheres,
por acaso, apenas por acaso,
no meio da turba irascível
um homem se curva e socorre outro,
o alivia do excessivo peso,
e,
por isso mesmo,
compreende a carne 
e mancha de sangue,
para sempre, suas vestes.

 

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

O GRITO DE RAQUEL

Para onde foram, afinal,
teus filhos, Raquel,
cujo pranto inunda a foz mesma do Nilo?
Para onde, se a morte não é um lugar?
Vagam no mundo em pátria alguma?
São doze os signos do céu,
doze meses a volta em torno do sol,
doze tinas com água se enchem,
parte-se o pão para doze convivas, 
doze taças de vinho,
o sangue de doze crianças.
Sim, eles não mais existem,
não há porque se consolar,
cumpriu-se a promessa
e o engano se desfez,
o pai procura o filho perdido,
a mãe chora o filho que não nasceu.
Tarsila Eskeff
 
 

 

sábado, 20 de janeiro de 2018

A MOÇA DE ITABIRITO

para Maria Cecília

A moça de Itabirito, claro está, 
não é aquela do sabonete araxá, 
a moça de Itabirito,
vive ali e eu moro cá, 
tão longe dos montes,
tão perto do mar,
a moça de Itabirito nunca me veio visitar
nem eu, pedra, me movi deste lugar.
Lá o vento canta uma canção de ninar,
aqui, desperto, tão longe e tão perto,
eu ouço o canto mineral, o apito
de um trem de ferro,
o berro de uma fonte,
de Itabirito um riacho a desaguar,
tão longe dali, tão perto deste mar.