segunda-feira, 1 de julho de 2019

CARPE DIEM

O instante e só
e, propriamente,
não se dirá
proveito.
Para o homem
debaixo do sol?
Pois que o tempo
nomeou-se-lhe
Kronos,
o devorador.
E a hora,
fluída como a água,
tempestas.
A tempestade - Giorgione Barbarelli

segunda-feira, 24 de junho de 2019

O CONCERTO PARA PIANO E ORQUESTRA OPUS 20 DE ALEXANDR SCRIABIN

Um silvo longo e tênue vaza a floresta
que é quietude e imensidão.
a forma de tudo é mais breve
e a vida no meio de tudo é infinda,
na calma noite anoitecendo
na calma noite
na calma silenciosa noite descendo
um choro.
tanta lágrima e tanta estrela
morrendo,
tanto nascimento e morte
no girar-se o universo calmamente.
um choro longo e tênue molha o rosto
que é terra e solidão.
A alma de tudo é tão leve
e a leveza do corpo de tudo é linda,
ainda que uma dor sendo
ainda que uma dor
uma dor no olho cantado
em coro.
ainda que arda na carne o tempo
e tudo arda e doa
e tudo mate e alegre, sequestre
e devolva
tudo é esse choro na noite - som
caindo da terra no céu.

Amarelo, Vermelho e Azul - Wassily Kandinsky

DA INSÔNIA

O vento lá fora seu sibilar
enche de pavores essa noite
plena de horas da morte,
um cão que uiva e o universo
como um peso, esfera
de chumbo.
Janelas desee quarto de mudas
paredes brancas, por onde escorre
o líquido viscoso da insônia,
não é bom que o homem seja só,
como a terra desapostada,
sem conhecer portas de trevas ou luz,
não é bom esse silêncio
quebrado pelas batidas visíveis
de um coração por onde corre
um sangue gélido de réptil.

O sono da razão produz monstros - Francisco de Goya

quinta-feira, 20 de junho de 2019

TARDE

Não. Você não é a sombra da tarde
aquela enorme sombra, final do dia
noite nova. Não é
nem você é a dor da sombra
coberta pela noite infante.
você meu anjo é uma dor, você é...
e a manhã, a pasta de dente, o cigarro
o dia que começa e todos os sonhos
que tenho
e têm os seres humanos,
e eu que olho com cara de idiota
a face clara do céu. você.
Também não é tudo você, mas é muito
e se te perco choro
e se me perde choro,
Também eu não sou nada
e se me quer dou
e se te quero dou,
Já não somos claros e sem culpas e talvez
demore muito demore amar por amar
abraçar e sentir nossos corpos
e nossos cheiros meio adocicados e ternos.
Hoje a luz do sol bate em mim
em seguida nos seus olhos
e você pode fazer inquéritos
sobre as minhas sombras.


quarta-feira, 19 de junho de 2019

HISTÓRIA NATURAL DOS QUADRÚPEDES

Por ora, admitamos ser possível compor
a história natural dos quadrúpedes, sem,
contudo, esquecer que nada de natural há,
na verdade, na condição, ou melhor dito,
configuração ou desenho ou formatação
daqueles que caminham sobre quatro patas,
e a bem dizer, nem nos que sobre dois pés
se firmam e, por isso, bípedes se chamam.

Não nos esqueçamos, também, mais ainda,
que há entre os nomes e as coisas, entre
correr o leopardo com os olhos fixos e frios
a perseguir a impala, há entre esse movimento
e a tentativa pífia de reter esse fluxo
uma distância infinita, e nós não podemos 
traduzir, sequer, o pavor nos olhos dela;

O que se dirá, então, das cores, do sangue
que congela quando, à noite,  a lua descreve
uma parábola de dor e o leão urra
ainda com o gosto da fêmea percorrendo
o corpo quente, vaso a vaso, veia a veia
e o homem se deita e, perplexo, levanta
novamente, ouvindo uivar ao longe o lobo,
como de dentro de si ouvisse o canto sinistro.

Por ora, admitamos ser possível compor
a história natural dos quadrúpedes, sem
esquecer que ali onde a história começa, 
desfaz-se, para sempre, a própria natureza.
Pintura rupestre na Caverna de Chauvet - França



sábado, 15 de junho de 2019

ENÁLAGE

Quero saciar a infinita sede, a hórrida sede,
nos teus seios quero saciar a minha sede, quero,
antes que o meu próprio sangue em pedra se converta,
serenar a criatura sedenta que mora dentro de mim,
a criatura do deserto do meu corpo e da minha alma,
a mais infeliz das criaturas, cuja voz, do deserto, clama.
Quero deitar-me sobre os teus seios tão belos,
repousar minha cabeça sobre os teus seios nus.
Dá-me, mulher, amada, a vida que em teus seios habita,
dá-me o amor que habita, viscoso, a morada dos teus seios.
Red - Óleo sobre tela - L. Folgueira

quinta-feira, 13 de junho de 2019

ATOPIA

Lugar nenhum é este 
em que nos encontramos
agora,

e não diga nada porque palavra nenhuma
razão para dizer
nem por isso, meu amor, 

estamos silentes e nem por isso
perdidos.
Sobre a matéria das coisas
sobre o brilho
das coisas, sob as dobras do tempo,

sob as dúvidas de toda vida,
cantamos com nossa voz menos dura
um salmo:
perdão.
estamos de mãos dadas e partimos
para não querer nada
para não perder nada
não porque somos absolutos
mas porque não nos distinguimos
de nada.

Josephine Wall - Eros and Psiche
 

sexta-feira, 7 de junho de 2019

MIRANTE DO VALE

Ocorre, muitas vezes, 
de ir buscar ao que passou, 
a razão ou
a justificação deste tempo presente;
e são
as velharias
as memórias como ladrilhos 
ou pastilhas gastas,
pequenos cacos assentados 
no piso
da antiga casa 
onde morri irreparavelmente,
os lugares onde morreram irmãos 
e amigos,
todos eles mortos sem redenção,
porque não os redime 
nem os traz -
e toda aquela gente -
não os traz o garimpo das pequenas pedras -
ouro que nunca existiu nem brilho -
as pequenas pedras atiradas
no meio de um riacho que secou.
Não fossem as cores lúgubres, 
a paleta escura e terrível de Georg Trakl,
que sentido havia em pisar atônito e bêbado,
crivado o peito de lanças e adagas,
na tua companhia, ou só,
estas emporcalhadas ruas e escuras?
Sabendo à urina, um cheiro de amônia,
esses infernos, essas pocilgas,
a falta de dinheiro, 
a falta de amor, 
Não fosse a melodia ininterrupta e grandiosa,
as arquiteturas de Mozart
e a loucura estampada na face,
mas inerte, 
como uma máscara que usássemos tristes,
não fossem as constelações 
inalcançáveis,
e as prostitutas a gargalhar,
que sentido, pergunto,
nessa insistência estúpida, 
e tu, 
tu me responderias:
esquece.
Robot at the bar no mouth paintig - Burton Gray


 

O CAMINHÃO DE LIXO


O caminhão de lixo chega
soltando fumaça
pelo nariz,
e seus pés enormes, 
fazendo estrondo, pisam
o céu.
O caminhão de lixo
vem arrastando carcaças
de animais,
e os homens vão levando tudo
o que na rua
está posto,
tenho medo porque sou pouco 
e de mim quase
nada sobra,
nem o amor que tenho, 
nem meus brinquedos
de giz.
Mas a cidade deve estar limpa
e quase nua,
sem véu,
sem os restos de dores
dos que se martirizam
pela obra
de construir a vida,
de inventar tantos segredos
banais.
Tenho medo que me levem
esses homens vorazes 
e sem rosto.
Paul Klee