segunda-feira, 11 de maio de 2015

REQUIEM PARA AÇUCENA

Açucena não morreu,
mas a memória dela em mim
tornou-se um lago calmo em noite escura;

Desde muito cedo amei Açucena 
e quebrei os dentes e chorei e insisti todavia,
porém ela era longínqua e me não amou decerto.

Eu me lancei ao mar, eu fiz preces comovidas. 
Consultei geometrias e matemáticas, 
fiz poema de amor, fiz música celestial,

Mas Açucena era inexata e escalena.
Açucena era burra e trivial, 
era triste e enigmática, 
gerúndia e aborrecida.

Açucena era o tempo do tempo incerto, 
face da morte no céu claro do meio-dia, 
câncer de estrelas na noite serena,

espanto do que ia em mim, 
retrato dessa vida anódina e pequena, 
que tem por glória a sepultura.
Willen de Kooning


A MORTE E A DONZELA

Foi numa tarde luminosa e quente
Que os meus olhos tristes, de repente,
Fecharam-se pesados de pesado sono.
Numa tarde luminosa de outono.

Beijou-me a têmpora uma donzela,
Com lábios que eram doces e eram frios,
Quando me voltei tremi, com calafrio,
Mirando o meu rosto no rosto dela.

Nesta tarde de outono, iluminada,
A alma que tenho sempre presa e atada,
Não é a mesm’alma que sempre eu tive,

Abandonou-me o corpo em que estive,
E da donzela a alma que vive e fremita,
Desde então, no que sou, está e habita.
Egon Schiele - Tod und Mädchen

JOICE

Joice, você é tão pequena. 
As palavras deste mundo ainda são mistério
para os seus ouvidos de criança.
Joice, você é tão pequenininha.
A casa pobre do seu pai,
A escadaria assimétrica e sem corrimão,
O jogo de quebra-cabeça da irmã mais velha 
rasgado, no chão, 
meio barro meio cimento.
Joice, seus cabelos como feixes de trigo.
Para além dessa casa, existe a rua
e os que nela transitam e vão envelhecendo. 
Para além dessa rua, 
há o comércio
e os que nele persistem e vão envelhecendo.
Joice, seus olhos como estrelas nascentes.
Dentro dessa rua, 
os que ambicionam.
os que mentem e gritam. 
Os violentos, os párias, os canalhas, 
os grandes homens de negócio, 
os grandes dirigentes,
os grandes artistas, as famílias felizes.
Suas mãos como luzes que se apagarão.
Poor Girl - Elin Kleopatra Danielson Gambogi


POÉTICA PARA VERA

Não sou amigo dos jogos, 
sobretudo, jogos de palavras; 
aborrecem-me os trocadilhos 
e a profusão
de hífens e vírgulas
e pontos e reticências.
Aborrece-me, 

ainda mais,
o voo cego sobre a terra,
a arrasada 

terra da poesia.
Quase prefiro o silêncio
das bibliotecas, e mesmo estéril, 

e
um profundo silêncio;
a vontade de nada dizer;
e só ir de aqui a acolá.
Quase.

Woman - Willen de Kooning

sexta-feira, 8 de maio de 2015

TENHO PARA FALAR DAS COISAS AS PALAVRAS

Tenho para falar das coisas as 
palavras, 
e, por isso, estou mudo. 
Porque digo o que não vejo
e os meus olhos não dizem.

Tua cor-de-rosa.
Passas e são ligeiros
movimentos.
Tempos, ruas que se
desfazem, paisagens subtraídas, passas.
Tua cor-de-rosa.
Tenho que falar porque falo.

Boca de dizeres,
Cerejas que digo -
Tafetá - Tua cor-de-rosa.

Tua cor que não decifro.
Coral, recifes de.
E água na garganta,
sangues que me correm,
minhas umidades.

Rosa na noite da noite irmã,
tez clara como fosse.

Aurora rubra o que escondem
as tuas cores.

Tua cor-de-rosa.
Tua flor que não duvido.

Não vejo, azulejo.
(Olhos que me deram, olfatos
que tenho, paladares.)

Não duvido porque falo.
Os teus pomares.
lugares.

Tua cor-de-rosa.

Lady with Fan, Gustav Klimt, 1918

segunda-feira, 4 de maio de 2015

O PARAÍSO


Tu me conhecias e reverenciavas
o meu poder
eu te conhecia e louvava 
a tua força.
Demais moços
amamos demasiadamente
e tocamos fundo nossas almas
de amantes.
Olhávamos perfeito para o céu
e ríamos, como ríamos.
O que é, meu bem, impossível?
eu te amava tanto
tu me amavas tanto
que juntos enganamos Deus
e voltamos para o Eden.
Tu eras o princípio
e eu teu hálito santíssimo.
Conhecíamos a história
e ríamos dos medos dos homens.
O que é que temíamos
e nunca olhamos
sob a ameaça de nos acharmos
pequenos
como todos os seres?
Lovers with blue flowers - Dora Holzhandler

domingo, 3 de maio de 2015

O CONCERTO PARA PIANO E ORQUESTRA EM FA OPUS 20 DE ALEXANDER SCRIABIN

Um silvo longo e tênue vaza a floresta
que é quietude e imensidão.
a forma de tudo é mais breve
e a vida no meio de tudo é infinda,
na calma noite anoitecendo
na calma noite
na calma silenciosa noite descendo
um choro.
Tantas lágrimas e tantas estrelas
morrendo,
tantos nascimentos e mortes
no girar-se o universo calmamente.
Um choro longo e tênue molha o rosto
que é terra e solidão.
A alma de tudo é tão leve
e a leveza do corpo de tudo é linda,
ainda que uma dor sendo
ainda que uma dor
uma dor no olho cantado
em coro.
Ainda que arda na carne o tempo
e tudo arda e doa
e tudo mate e alegre, sequestre
e devolva
tudo é esse choro na noite - som
caindo da terra no céu.
Works on paper - Amira Rahim

sábado, 2 de maio de 2015

O SERENO

Hoje eu sei o que é o sereno. Passei toda a noite (juro) sentado na calçada
olhando para um retrato teu. Confesso que fiz isso só para poder dizer que
passei toda a noite sentado na calçada olhando para o teu retrato. Não, 
não é pouco. Ademais, eu não podia simplesmente inventar uma história dessas. 
Que valor pode ter uma história inventada, afinal? E que amor pode existir
que não exija grandes aventuras? Não as de matar dragões e vencer
exércitos invencíveis, mas a de passar toda a noite sob o céu isento de estrelas; 
não as de por a correr os bichos mais ferozes, mas a de colher na boca 
o gosto da madrugada e no gosto da madrugada o gosto da boca de quem se ama. 
A grande, a imensa aventura de chorar sozinho enquanto a cidade dorme 
e escutar ao longe o apito tristonho do guarda-noturno; travar amizade 
com o meio-fio e compreender os sentimentos das pedras da rua, 
sorrir para elas e dizer-lhes “Olhem, esta é a minha querida, o meu bem, 
o meu anjo”.
Passei toda a noite sob o céu firmamento e recebi na minha face o sereno frio. 
Era um manto tão leve, leves mãos que me afagavam. Era a tua face sorrindo, 
os teus olhos que me guardavam, enquanto eu fitava no teu retrato 3 x 4 
a imensa beleza do mundo, a inominável paz da noite provinciana.
David Bellamy

NOITEZA

Essa noiteza
de que os teus olhos se mancharam
antes que a noite
de manto negro se noitasse
essa noite
de sozinhez
nos teus olhos
foi a dor mais amarga
e a dor mais aguda
que no olho do dia
no ventre
da noite se gerenou
Pudesse
eu nem chamar isso
tristeza
sereno.


Willem de Kooning

sexta-feira, 1 de maio de 2015

PERDOAR

Há uma ternura e uma beleza 
terna 
quando, em relances sutis, 
tu me olhas como quem vê
perdoando.
Não um pecado, uma falta,
uma mácula
mas o que há de incomunicável,
quando o teu perdão que olha procura
perdoar-se.

James Mollison – Where Children Sleep