segunda-feira, 23 de abril de 2012

OUTRO PLANETA

O outono em meio 
ao meu rosto úmido 
da manhã, 
aquele nosso segredo, 
pão de centeio, 
carne sedosa da maçã, 
eu não tenho medo, 
o outono, a cor, o dia 
o sol meio perneta, 
É só que o meu corpo havia, 
no teu,  
outro planeta.
 
Sacred Spaces Flyer - Jenny Meehan


sábado, 21 de abril de 2012

OMNIA SOL TEMPERAT

Tudo o sol doura, teus cabelos; 
ficamos em silêncio na tarde iluminada. 
As aves do firmamento 
e os animais da terra aquietaram; 
apenas, nos caminhos do tempo 
o embate desses meus olhos 
contra os teus 
e palavras nenhumas; 
não te quero dizer do amor 
cuja chama queima minha alma eternamente; 
e digo. 
Nem clamar que aplaques uma sede infinita; 
e clamo. 
Há água suficiente feita desse instante claro, 
que é quando por uma chispa de ternura 
o teu braço roça o meu braço, 
o teu cheiro percorre o ar do dia. 
Ainda não houve nenhuma noite 
e nenhum encontro, e, 
por isso, 
a lágrima inaugura essa aurora.
Henri Lebasque

terça-feira, 17 de abril de 2012

NÚMERO DE DANÇA

Deve ter-se muito cuidado, 
não descuidar a vida e seu movimento; 
e nos nossos tempos
atenção, 
o vento traz odores 
malévolos. 
A porta, a porta aberta, 
os olhos, 
os olhos. 
                   O teu corpo é um santuário 
                   O teu corpo é a tua alma. 

Não se deve dançar no baile das máscaras, 
             não se pode marcar esse ritmo 
                     embalar-se nesse 
descompasso. 
As dobras do vestido se desfazem 
as lágrimas embotam o salão 
Tua figura de dança 
                      os teus pés ligeiros 
os teus sonhos. 
Não se deve dançar com a morte.

sábado, 14 de abril de 2012

SOBRE FORMIGAS E DIAMANTES


Não cabe a mim, nem a ti, ou qualquer outro ou a nada 
decidir ou não decidir sobre a vida. Que atitude tomar  
senão viver e continuar vivendo os dias e as noites, 
apodrecendo magnificamente e fertilizando outros campos? 

Não é de se formular objeções e lançar insultos ferozes, 
a vida não é uma instituição, não se revoga em congresso, 
baixo às estrelas inumeráveis, nas moléculas de teu sangue 
meu amor, nenhum átomo do que se pode chamar de incorreto, 
nos pântanos pululantes de bichos e nas selvas calorosas, 
nos planetas desconhecidos e no centro do teu olho verde,  
uma coisa só incondicionada existia eternamente e antes, 
está nas formigas e nos diamantes, no gelo e no teu filho, 
está na escadaria da casa da tua mãe e na tela do cinema, 
está no teu sexo quente, como nas flores e nos ratos, 
nas galerias subterrâneas e nos peixes luminosos e cegos, 
no teu silêncio depois do amor e no grito do teu parto. 

Está tanto e em tudo de forma tão completa e diversa, 
confundindo os padres e os profetas barulhentos 
intrigando os filósofos e suicidas convictos 
inaugurando constelações que nunca veremos. 

Não cabe a mim, nem a ti, estarmos a julgar ou medir, 
para além dos meus prováveis setenta ou oitenta anos, 
para além do último filho de minha descendência, 
há a vida que não é uma coisa ou outra coisa, 
há a vida que não é inspiração de nenhum supremo deus 

Não perguntes o que é que existe o que é que não existe, 
conceber o que não existe é uma doença da nossa pequenez, 
existe a vida interminável e vária, o céu azul, meu pé.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

ELEGIA

Tudo é falso como no teatro.
Quando se apagam as luzes,
E se retiram esses pontos, 
Tudo é falso. 

Certo. Não tivemos escolha.
É preciso tomar ônibus
E nós tomamos ônibus.
É preciso trabalhar na fábrica
E nós trabalhamos na fábrica,
E fabricamos.

É preciso reparar na vida,
nós reparamos na vida.
É preciso assinar promissórias,
Nós assinamos.
É preciso amar até a morte,
nós amamos e morremos. 

Certo. Certo. Certo. 
Estamos neste tempo triste, 
E mesmo aqui tudo é falso,
Como na vida.

E a verdade é o que a palavra  encerra,
Nessa mudez de palavra. 
Nessa tentativa de dizer.
Joan Savo

quinta-feira, 12 de abril de 2012

BRUNA

O mundo é um teatro doido e baço,
Bruna, e ninguém sabe o que faz.
Levantam casas, desfazem os laços,
apertam as mãos e um beijo se desfaz.

O mundo é um brinquedo chato, um gato
vagaroso e triste, um cachorro vadio.
O mundo é um lugar cheio de vazios,
que nós temos de encher de fato.

E nós, Bruna, somos crianças. Eu que
envelheço e canto. você que brinca, dança
e vai enumerando sonhos e porquês.

Porque o mundo é também a nossa cara,
uma palavra minha, uma sua trança.
Coisa linda a que nada no mundo se compara. 
Robert Hagan 1947

PORCELANA

Na verdade não há mesmo meninas
de porcelana
nem há no mundo o que possa ser
irreparável.
Na verdade são símbolos teu rosto
e teu corpo
teus olhos ainda cheios de brilho
e teus pés diminutos.
Não há no mundo os anjos celestes
nem promessas.
Não há no mundo, nem poderia,
um azul sem mancha alguma
de alguma dor.
Não há nem mesmo no mundo todo
uma hora calma
um instante sem medo, sem culpa,
sem dúvida que agite o peito.
Contudo, em meio a tudo,
na instituição do dia e seu comércio
na monotonia das horas e no falarem
e falarem os homens,
há um sinal preciso, urgente e definitivo,
um sinal inequívoco de que é possível
o bem, o amor, a claridade, a vida.


NOITE

 A noite é como a chuva
(aquela chuva que Luiz Tatit cantou
que faz as pessoas tristes felizes contrariadas
reconfortadas num átimo)
ando na noite imensíssima
ouvindo seu canto melismático
e tudo na noite está escuro
e ilumina
as pessoas vistas desse trem
as casas
as fábricas
as avenidas que não têm fim.
(o amor é tão doído a noite)
Houve tempo em que os homens pensaram monstros
na noite
agora há a cidade que não se pensa
e é hora de redimirmos o engano
e passear na noite como no jardim.
Está na hora, cavalheiros,
de não temermos nenhuma espécie de beleza.


NOTURNO

A noite não passou ainda, a noite 
como um espelho, como um espelho velado. 

Tua imagem e teu corpo 
que é fresco como a terra, 
como a terra molhada. 

Quero morrer em teu corpo, 
que é fresco como a terra molhada. 
Eu ainda me lembro, 
eu ainda me lembro. 

Quero esquecer a vida, quero 
mil vezes esquecer a vida. 

Pousa como a noite a tua mão, 
a tua mão de seda, 
pousa a tua mão macia 
sobre as pálpebras minhas fechadas. 

A noite vai passando ainda. 
Cobre-me de beijos, 
cobre-me de beijos como uma mortalha. 

Como se eu fosse a terra 
pela chuva tocada; 

como se eu fosse a terra, 
a úmida terra beijada. 
Girl in white in the woods - 1882 - Vincent Van Gogh

quarta-feira, 11 de abril de 2012

DALVA

O mármore branco 
da mesa 
não é mais claro 
que tuas mãos 
e é mais branco 
quando postas sobre a mesa 
a claridade mesma  
ensinam 
nem outra coisa 
senão a aurora 
a paisagem é - 
do mármore 
das mãos 
e teu batom. 

E se claramente se observa 
nasce o dia em teus olhos 

branco e vermelho 
branco 
chuva dos teus cabelos 
negros. 

terça-feira, 10 de abril de 2012

PRECE

Ave Maria, gratia plena

a luz da tarde dessa quinta-feira

se esvai. a luz da tarde. cambaleando.


pela rua cubatão são paulo l6 de abril 1992.


Maria


os edifícios expõem a negra face


nunc et in hora mortis nostrae


ora pro nobis


eu te amo Maria


mas o amor não é nada


presta atenção


os automóveis é que são


eternos,


e a sombra nos cobrindo.


Dominus tecum


a luz da tarde dessa quinta-feira


benedicta tu in mulieribus


bendita tu entre todas as coisas


e bendito o fruto qualquer


e o ventre qualquer.


OCIDENTE

Nessas horas absolutamente 
abandonadas, 
céu abandonado, 
espaços de abandono, 
a cor de ouro em paredes 
e vidraças, 
Deus é mudo, 
e o universo 
sua voz. 

Penso que é tarde, 
posso pensar, 
porque o meu corpo participa 
do abandonado, 
e é como um cansaço, 
não do esforço, do dia, 
das horas. 
E, talvez, nem cansaço, 
uma parcela de morte, 
uma melodia da lira de Orfeu. 
Antibes, View of the Cap, Mistral Wind, 1888 - Paul Signac


O DIA DA REVOLUÇÃO

Mãe 
não faça a marmita do mesmo gosto de feijão, 
faça diferente, pensando que é sábado ou domingo 
Mãe 
pode ser inútil esta minha ida à vida, 
mas veja que ando sem ninguém mandar, 
veja que falo sem ninguém falar, 
mãe, eu amo 
sem ninguém achar o diabo do amor. 

Mãe,  
vou trabalhar, e hoje as vozes gritando, 
os ouvidos todos ouvindo, mãe, 
apronta logo minha hora, 
estou com fome, 
não vejo a hora, almoçar, 
mãe, mãe, 
oh mãe, minha mãezinha, 
tudo isso 
hoje parece festa, 
meu almoço tem de ter fitas 
tem de ter carne na marmita mãe,  
para que eu não sinta fome 
da carne que anda nas ruas, 
para que eu não sinta ruas, 
para que eu não sinta solidão, 
mãe, 
não agüento mais esta demora 
vamos embora, 
Apronta logo esta marmita 
do dia da revolução, mãe. 


segunda-feira, 9 de abril de 2012

PARA UMA MENINA MORTA

Dizem os filósofos que talvez fosse melhor 
não ter nascido 
e tudo ser a paz dos campos, dos vales, 
das aves, 
a paz das alturas celestes, do mar, 
do segredo. 

É, no entanto, um milagre palmilhar a senda 
da vida, 
e, no tempo, no instante, na centelha, 
percorrer a distância e seguir 
o distanciamento. 

O que dizer da morte 
quando apenas a figuramos e lhe emprestamos 
um caráter, 
o que dizer do que está para fora de nós 
e nos retira para fora de nós ? 

O que dizer da hora medonha ? 
A hora intrépida que se insinua na decrepitude, 
na enfermidade,  
que escurece o rosto da criatura, 
a perguntar na cruz,  
pai,  por que este abandono ? 

A hora, a única,  
o rebento,  
a infante 
que vem participar dos folguedos infantis.  

O que dizer da morte 
quando ninguém a pode dizer ? 

O nevoeiro, 
a cilada ? 

a insuspeitável, o que dizer senão que nos toma  
e nos cala de repente (Rilke) 

no silêncio dos campos, dos vales, na paz dos campos,  
dos vales, 
das aves, 
na paz das alturas celestes, na paz 
das hostes celestiais.  

O BRILHO DOS TEUS OLHOS

Não me deitarei na cama a sonhar teu
Rosto claro, imagem que não me move.
Não lançarei impropérios contra os céus;
Despautérios quando é tarde e chove.

Não te isolarei deste tempo triste,
Desta miséria que está sempre conosco.
Se os teus olhos brilham, é um brilho fosco
Se choram, sinal de que bem viste.

Amo não o que és e os teus mitos,
menos tuas palavras que os teus gritos,
Amo, e assim, sigo pedra por pedra,

Construindo a futura vereda.
As nossas repúblicas futuras.
Sem disfarces, sem dores, sem frescuras.


MANHÃ


Se a noite 
nega a geometria 
encontro o Bem 
em lembrar-te 
e guardo 
nos olhos imóveis 
tua forma 
clara e precisa 

Assinalo 
o ponto luminoso 
possível 
instantâneo 
universo quantum 
Big Bang 
expandindo  
para a hora do sermos. 
Manhã. 

O CAMINHÃO DE LIXO

O caminhão de lixo chega soltando fumaça
pelo nariz,
e seus pés enormes, fazendo estrondo, pisam
o céu.
O caminhão de lixo vem arrastando carcaças
de animais, 
e os homens vão levando tudo o que na rua
está posto,
tenho medo porque sou pouco e de mim quase
nada sobra, 
nem o amor que tenho, nem meus brinquedos
de giz.
Mas a cidade deve estar limpa e quase nua,
sem véu,
sem os restos de dores dos que se martirizam
pela obra
de construir a vida, de inventar tantos segredos
banais.
Tenho medo que me levem esses homens vorazes
e sem rosto. 



domingo, 8 de abril de 2012

SONETILHO


Quando termina o amor, que permanece?
A terra finda , o mar não principia.
Quando o amor termina alguém tece
Longo, longo bordado que desfia.

Cantilena da noite em noite fria
Sobre o tear da dor que enternece,
Alguém a morte vê que se anuncia,
Morte triste, o claro dia que envelhece.

Mas o amor era não muito mais,
Esse adiar o tempo de partir,
Esse esperar o sempre, o nunca mais.

Calar na carne o fim de tudo.
Calar a hora escura de urdir
a última trama na roca do absurdo.


VARDARAT, GHIBLI, ZÉFIRO, LEVECHE, ETESII, KHANSIN

Diz o poeta que só de ouvir passar o vento valeu a pena ter vivido. 
Ontem o vento soprava forte e escuro, e mudava constantemente de direção. 
As folhas das árvores agitadas gritavam estranhas palavras, 
e era o próprio vento quem lhes as soprava nos ouvidos verdes.

Em todos os tempos e em todos os lugares os homens deram nomes aos ventos,
como a tudo. Dar nome é uma maneira de adquirir algum poder 
sobre a coisa nomeada, nas mais das vezes porque tudo se nos escapa, 
tudo é estranho e indizível, tudo é o não sei o que.

Os ventos que sopram sobre as ruínas de antigas cidades; 
os ventos que sopram sobre as lavouras, sobre os pastos; 
os ventos que sopram do mar; os gélidos e duros ventos do norte; 
Nós que somos apenas um sopro e o pó levantado, como diz a antiga sabedoria.

O nome do vento, para que ele nos ouça, o nome do vento 
para que seja nosso irmão; o nome; com que nome me chamaria o vento? 
eu que não me posso mover além dessa fragilidade;  
eu que fraquejo no deserto, enquanto o vento quente e poderoso me arrasta. 


EM CONFORMIDADE COM UM CERTO EPIGRAMA

Eu bem que podia passar sem o teu rosto; 
(Et vultu poteram tuo carere) - Marcial -
e a noite passara em mim, o silêncio me cobrira. 

Eu bem que podia passar sem os teus olhos; 
adviesse o dia cálido, 
seu manto de luz. 

Eu bem que podia passar sem os teus seios; 
sem as tuas pernas; 
sem as tuas mãos. 

Eu bem que podia passar e não me fatigar 
enumerando; 
eu bem que podia passar sem ti, 
inteira e teu perfume; 
inteira e teu hálito; 
e não me fatigar enumerando. 

O HOMEM

Sempre
a condenação:


Serás!

E mais: saberás com teu olho divisar
dentes na boca que sorri

e o sistema solar e a Via Láctea
e o abismo.

Teu passo sobre a rua e o peso da língua
de mil músculos.

Teu passo sobre a rua e a rua interminável

movimento
de servidão

Um pé no Saara, outro pé
e outro pé e outro em Marte.

Tanto amor,
tanta desgraça.

O degredo
de se comover porque o céu é azul,
e porque é assim mesmo
o que comove,

Nada.

Deus olha sombrio e incrédulo,
e no olho grande de Deus

vergonha,
medo.



quarta-feira, 4 de abril de 2012

TRANÇAS

Beatriz foi o meu primeiro amor, 
mas eu recordava Cláudia todavia 
e lhe queria muito bem. 

Depois foram outras dezessete 
(para não ser conta de mentiroso). 

Dezessete nomes e figuras, 
Dezessete fontes e cinturas. 

Eu, hoje, aprendi bem o amor. 
Plantei rosas no jardim do peito. 

Essa moça que anda, fala, dança 
e circunscreve a cidade fria, 
quem sabe não estenda a mão vazia 
e colha uma flor dessa minha trança. 

segunda-feira, 2 de abril de 2012

MEMORIAL


Comprei ontem, em uma loja do centro da cidade, uma pequena caixa de música. É estranho, mas ao ouvir o som delicado e até melancólico, tive a nítida sensação, ou antes, a alucinação de estar cruzando a rua onde moravas. Eu era jovem e tu eras jovem. Havia árvores de onde caíam gotas frias da água da chuva que se acumulara; havia o longo muro da escola onde eu escrevi, com tinta spray e olhos marejados, o teu nome divino e as palavras “eu te amo”; havia a cor azul da janela da tua casa e a cor azul do céu no dia em que eu te vi pela primeira vez. Havia - meu Deus, como me lembro - a cor negra dos teus cabelos, a cor negra dos teus cabelos.
Só hoje me dou conta daquela imensa felicidade; só hoje me dou conta que a felicidade está sempre na distância desses dias periféricos. Dias luminosos e de preocupações tolas; de mães que gritam chamando para o jantar; de furtivos olhares crispados de luzes e pequenos poemas colhidos como flores do peito. Só hoje me dou conta desse arrebatamento. Eu que endureci
e me tornei pesado, de pesado passo. Ouvindo o tilintar dessa coisa simples que é uma caixinha de música, parece que caminho agora com a leveza, não dos meus, mas daqueles teus passos. Leves passos de menina, que ao invés de gravarem no chão alguma pegada, iam escrevendo pelo caminho a palavra “amor”.

Gladys Maldaun

MIRIAM

Miriam era um nome mágico e o som, tantas vezes pronunciado baixinho, como em segredo, era uma chave da minha imaginação infantil. 
Nesse tempo eu era como que o herói ladrão de alguma floresta inglesa, ou o bravo cavaleiro que pelos campos verdes desfila sua elegância corajosa. Miriam é o nome do que para mim foi o encontro com a misteriosa coisa a que chamamos de amor. 
O tempo costuma conduzir as coisas para o véu indistinto do que se perdeu, para a nebulosa região do esquecimento. O que eu fui quando criança e os tão longínquos sentimentos que habitavam o meu coração inábil são hoje a tentativa inútil, a frustrada tentativa de caminhar como quem sonha.
A bicicleta, o sol, o muro da casa, a rua. O vento, o vestido, a briga na calçada. O futebol, a caixa de sorvetes, a escola, a chuva. Miriam tinha cabelos negros e curtos; Miriam vivia em uma casa bem cuidada e sua mãe cozinhava muito bem. Amei Miriam em segredo. Apenas gritava-lhe o nome junto a um riacho, longe de ouvidos humanos, longe do que não fosse mágico, longe da possibilidade do desencanto. Gritava-lhe o nome e observava a resposta da água a passar sobre os cascalhos - a sua palavra fugidia.






REQUIEM PARA AÇUCENA


Açucena não morreu, 
mas a memória dela em mim 
tornou-se um lago calmo em noite escura; 

desde muito cedo amei Açucena 
e quebrei os dentes e chorei e insisti todavia, 
porém ela era longínqua e me não amou decerto. 

Eu me lancei ao mar,  eu fiz preces comovidas. 
Consultei geometrias e matemáticas, 
fiz poema de amor, fiz música celestial, 

Mas Açucena era inexata e escalena. 
Açucena era burra e trivial, 
era triste e enigmática, 
gerúndia e aborrecida. 

Açucena era o tempo do tempo incerto, 
face da morte no céu claro do meio-dia, 
câncer de estrelas na noite serena, 

espanto do que ia em mim, 
retrato dessa vida anódina e pequena, 
que tem por glória a sepultura. 

SMS

Ela é a paisagem e o vento na paisagem; a aragem.
Eu a vejo como o cinema, o campo de trigo no sonho;
Escuto, no meio da noite, em meio ao sono, o tempo;
E vejo, como no cinema, no silêncio; a imagem

Dela.
Campo de trigo com corvos - Vincent Van Gogh