terça-feira, 28 de abril de 2015

MELANCOLIA

A carne é a mãe da carne e a alma não está em nós, 
nem a procures, porque há as pedras e há as plantas.

O que são vísceras, o que são nitratos, os teus olhos 
mais tarde acostumam-se à luz do sol, luz desse mundo.
O que são vértebras, o que são hormônios, os teus dedos 
mais tarde tocarão a pele escamosa de um homem nu,
o que são lágrimas, o que são plasmas, os teus gritos 
mais tarde ecoarão nos ouvidos de um homem chorando,
os teus gritos reverberarão na carne viva e fluida, 
e percorrerão os nervos da morte, as escuras cavernas
do amado, onde o amor não há, senão sucos e fibras,
senão a matéria da escuridão e do silêncio, a alma
do que vier a se iluminar, quando, entre os teus estertores, 
uma criança chorar pela mesma dor porque tu choraste.
Ernst Ludwig Kirchner - 1908

segunda-feira, 27 de abril de 2015

UM BRINDE A GUSTAV MAHLER

Domingo. Um brinde a Gustav Mahler. 
Nenhum anjo deveria morrer. 
Minha sala está cheia e linda 
com essa canção da terra.
É um alento...
pouco sobra nestes dias absurdos
de útil e belo.
A tua mão, S,
transcorre o domingo
afagando as minhas costas.
de madrugada me fizeste um grande bem
e eu só não entendo
porque estou aqui sozinho.
Um brinde a Gustav Mahler.

Willem de Kooning

CÂNTICO

Como Salomão,
eu canto
metades de romã são teus seios;
e teus olhos
luz no Líbano,
na alma brilhando.
Noite adentro velando,
eu canto
essa doçura muda em mim -
mirra e aloés
mel e cinamomo -
sol no deserto
bandeira de mil cores -
as uvas -
teu hálito um bálsamo
teus olhos um bálsamo
um bálsamo como um arabesco.
[tudo em ti é adorno
e tudo é fundamento]
Meu Deus, as piscinas de Hesebon!


sábado, 25 de abril de 2015

UMA CARTA

Talvez
tenha falhado inclusive o amor, e,
na superfície das coisas
uma retícula,
que nós com nossos olhos anêmicos,
talvez,
não saibamos olhar.
marca indelével.
Esses, de agora,
são os tempos que não sonhamos,
as horas nuas,
as noites sem palavras ternas,
ou palavras nenhumas.
São os tempos:
a luz que não significa,
a casa com outros habitantes,
o cansaço que não encontra
leito.
São os tempos feitos
da nossa antiga dor de não saber.
São os tempos : ir vivendo.
Ir vivendo é bom (ajuda a viver).
No mais, nenhuma canção de amor
cantará
senão esse tempo
em que ficou inscrito
o teu nome,
o meu nome.
Essas,
de agora,
são as horas passando
como folhas levadas pelo vento.

Johannes Vermeer's Woman in Blue Reading a Letter


PAPEL ALMAÇO

(para Patricia Simone)
Num instante, e quase não se percebe
porque o tempo é, sobretudo,
as coisas deixarem de ser o que são,
num instante, 
tornam-se lúgubres 
as cores alegres.
Não sei pensar sobre isso.
Olhava para as roupas no varal, 
balançando com o vento,
(o fio do quarador a separar o momento)
um silêncio,
um ruído de máquina de costura, e,
no terreiro, as marcas dos pés
das galinhas num desenho espiral.
O chiado da panela de pressão.
A folha de papel almaço
sobre a velha mesa de fórmica.
Sou eterno porque sou mutável e o mesmo.
Berthe Morisot

sexta-feira, 24 de abril de 2015

NA DESPEDIDA DE UM AMIGO

É triste despedir-se de um amigo 
e hoje, tristemente, despeço-me.
Por ser a vida tão curta 
e o mundo tão vasto
é triste despedir-se de um amigo.
Porque são muitas as pessoas
e muitos os desencontros,
é triste despedir-se de um amigo.
E resta a rua cheia de gente;
restam
os bares, armazéns, largas
avenidas por onde flui um rio
de prata;
um copo de cerveja 
e a Nuvem de Magalhães.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

NÃO ME DEITAREI NA CAMA A SONHAR TEU ROSTO CLARO

Não me deitarei na cama a sonhar teu
Rosto claro, imagem que não me move.
Não lançarei impropérios contra os céus;
Despautérios, quando é tarde e chove.

Não te isolarei deste tempo triste,
Desta miséria que está sempre conosco.
Se os teus olhos brilham, é um brilho fosco,
Se choram, sinal de que bem viste.

Amo não o que és e os teus mitos,
menos tuas palavras que os teus gritos,
Amo, e assim, sigo pedra por pedra,

Construindo a futura vereda.
As nossas repúblicas futuras.
Sem disfarces, sem dores, sem frescuras.


quarta-feira, 22 de abril de 2015

A COR DE MARAVILHA


(para Dilsa)
Qual é a cor de maravilha ?
É a cor do dia, a cor do dia que o sol trilha.
Qual é a cor do sol, que se esconde no mar,
atrás daquela ilha ?
Dizem vermelha, dizem salmão,
violeta, dizem âmbar, dizem
é a cor,
a cor do arco
a cor do arco da lira
que o cantor dedilha.
Mas não. Essa não é a cor de maravilha.
A cor de maravilha, a cor
de maravilha é a cor dos meus olhos,
quando a luz dos teus olhos
nos meus olhos brilha.

terça-feira, 21 de abril de 2015

O SEGREDO

A verdade está aí.
Não se oculta
e se desvela.
O céu azul que se pinta em uma tela,
a luz mortífera dessa vela;
A verdade está aí.
O teu rosto é uma verdade simples e bela.


O TEU SILÊNCIO

O teu silêncio tem grandes pedras,
tem grandes navios.
O teu silêncio de pedra,
o teu escuro silêncio.
Silêncio do tempo,
pesado tempo,
voz dos que já morreram.
Silêncio onde se ausenta minha voz.
Eco do meio da mata,
Eco do fundo de um poço.
Palavra de Deus teu silêncio,
luz na neblina,
Teu grande silêncio de mulher.


BRUMAS

São duas horas da manhã. Talvez durmas.
Neste momento eu me pertenço, 
e, assim,
realizo em mim uma fantasia, 
a saber:
a de que, neste momento, não pertenço a ti.
Houve um tempo e já não há, 
senão a bruma,
senão velhas fotografias, 
o guarda-chuva a te proteger
numa manhã fria e chuvosa.
Houve um tempo em que eu não existia,
senão teu hálito,
senão tuas mãos pequenas,
e a escadaria azulada.
São horas hoje tão vazias e eu,
uma figura de sonho,
que talvez vejas enquanto dormes, 
a segurar um guarda-chuva
para te proteger
nesta noite fria e chuvosa.

A NOITE DOS VAGALUMES

Tão grande é a noite
sobre os arbustos-seus-vultos.
Tão grande e profunda
a noite desta galáxia.
No campinho de areia, 
no gramado do quintal da casa
adormecida,
ali onde a mãe planta alfaces
e cebolinhas,
na sombra desse outeiro,
nos brinquedos
que são coisas grandes,
ali onde estão o cercadinho
e o pé-de-laranja
como pode haver essas luzinhas que voam?
Meu coração de criança cavalga ofegante
para o pé da montanha de Deus.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

A NATUREZA DA CHUVA

para Claudia

Esperamos pelas águas sagradas e profusas; nelas o espírito de Deus 

pairava e não havia dia nem noite; esperamos pelas águas, 
pelo milagre do que é fluido, como fluida é a própria vida; 
esperamos pelas águas ternas e límpidas, 
pelo beijo da chuva, seu beijo prateado. Esperamos.

Esperamos pelas águas rasas e profundas; à beira mar, na beira rio, 

sob as pontes iluminadas a vapor e medo; esperamos pelas águas,
pelo tempo do que é belo e frágil; como bela e frágil é a própria vida; 
esperamos pelas águas frias e cáusticas, 
pelo canto da chuva, seu canto melismático. Esperamos.

Esperamos pelas águas calmas e profícuas; no ancoradouro, 

no Rio Amarelo, na aldeia, no Tigre e no Eufrates; 
esperamos pelas águas, pelo quase nada da vida, 
que é fluida como a própria chuva; esperamos pelas águas 
eternas e verdadeiras,
seu sussurro de águas, a revelar um segredo. Esperamos.

domingo, 19 de abril de 2015

ALVENARIA

O sol doura meu rosto, 
mãos sob o sol são luzes. 

A grama é verde, 
verde como os olhos dela. 

Promessa de chuva 
no céu. 
Belíssimo cobalto. 

Não chove. 
O céu ainda mais lindo. 

A construção não para, 
o trabalho, o cansaço, 
o sol, o cimento, 

esse tijolo vermelho.

TREM DAS ONZE

Minha mãe não dormia enquanto eu não chegava,

ainda quando meu pai bradava: 

"Deita Maria, José já é homem!"

A sempre presente e forte neblina que cobria a cidade. 

Eu, um vulto, na noite. 

Ô Lídia, eu agora sou apenas um menino

e não posso voltar para te acalmar o coração.

Já homem eu te perdi para sempre,

sem uma lágrima sequer,

apenas a chuva que era uma torrente;

que era o que eu não chorara

e cujas águas só me encheram os olhos

quando,

na tarde cheia de sol, 

ouvi dizer: ela vive.

Ô Lídia, eu nem me despedi de ti,

sei que você me esperava,

mas você não dormia,

não dormia enquanto eu não chegava.

sábado, 18 de abril de 2015

INSÔNIA

O vento lá fora, seu sibilar
enche de pavores esta noite
plena de horas da morte.

Um cão que uiva, e o universo
como um peso; esfera
de chumbo.

Janelas deste quarto de mudas
paredes brancas, por onde escorre
o líquido viscoso da insônia:

Não é bom que o homem seja só,
como a terra desapostada,
sem conhecer portas de trevas ou luz.

Não é bom este silêncio
quebrado pelas batidas tangíveis
de um coração por onde corre
o sangue gélido de um réptil.



TARDE DE INVERNO

Meu braço queima 
em a tarde de inverno. 
Meu navio descendo  
escadas de. 

Granito brilha 
como  
tristeza brilha. 

Um protesto: 
vento que não havia 
ventou na vela 
que não havia. 

Outro: Um 
navio é um grito 
na água. 

quarta-feira, 15 de abril de 2015

A ÚNICA PÁTRIA


A única pátria é o trabalho 
A única pátria do homem é o trabalho, 
a única vida, o único milagre; 
o homem é o trabalho. 

A única pátria é o trabalho, 
ainda que se criem nomes vários 
e pensem despautérios; 
Marquem com sangue e pedras as fronteiras 
ou digam Brasil aqui, lá Alemanha, 
mais além digam Polônia ou o caralho, 

A única pátria é o trabalho. 

O único deus é o trabalho, 
sem ser deus de culto e dor e culpa. 
É só o trabalho o criador 
dos dias, do mercado e das ruas 
o trabalho criou os deuses, 

As igrejas, os templos, a loucura, a merda 
toda, 
mulçumana, cristã, xintoísta, 
pagã 
e o canto entoado fervorosamente 
o ranger das máquinas e o bater dos dentes, 

E nada, nada de místico o trabalho 
nem paraíso, nem calvário 
o trabalho é o homem trabalhando a trabalhar 
travando o bicho e seu urro primário, 


A única pátria é o trabalho 
A única pátria do homem é o trabalho, 
ainda que se criem nomes vários .


sexta-feira, 10 de abril de 2015

FUTEBOL

Quando o referee fez trinar o apito 

fui informado que, no céu, 
a altura 
de dez ou doze mil metros 
é que se formam estes chamados cirros 
que adornam esta tarde azul de outono, 
com ramalhetes rosas sobre edifícios distantes. 

É, de qualquer maneira, bom saber 
sobretudo, 
que há o jogo que não diz, 
mas evidencia, 
que esses homens e mulheres 
são crianças, 
(as crianças já sabíamos) 
e trouxeram suas cores e seus bodoques.

A BELA ADORMECIDA

Desprezo a amada que dorme.
Será por medo dela,
ou será
que não tenho coragem de acordá-la?
Dorme com o corpo quente de vontades fraternas.
Dorme.
No prazer escondido debaixo de brancos lençóis.
Suas coxas pulsam enquanto a moça dorme;
sua boca geme de prazer e de dor.
Uma moça a se molhar de sono,
desse sono que a não quero retirar.
Dorme, ficarei olhando,
e beijarei teus olhos,
levemente beijarei teus olhos,
enquanto me apronto para ir trabalhar.