Que grande saudade de ti
nesta noite
meu mestre
mestre Zé Lop
nesta noite distribuída sobre os que choram
sobre os que choram
sobre os que ganha-
ram
presentes
sobre os que perderam parentes, amores,
a vida,
E a vida, Zé, mestre da vida - nunca vi lágrimas em teus
olhos - nunca vi desespero em tuas mãos
tuas mãos hábeis, tuas mãos grossas -
Teu pai era um velho bronco e violento
teu pai abriu-te a cabeça com um machado -
mas tu, tu talvez
só tenhas sentido
a beleza de tua Maria,
que tinha vestidinhos rotos
e lavava roupa na ribeira
com uma grande flor no cabelo -
Teu pai morreu, Zé,
e disseste-me isso
sem peripécias
como quem diz. " Tá... vi que há a morte e a morte
nada tem conosco"
José Luciano morreu. um ano? onze meses?
José Luciano, teu filho. Subnutrição? Sarampo?
José Luciano, só recordo
esse nome
mas havia
outros três- onze meses? um ano?
caxumba? subnutrição?
teus quatros filhos morreram, Zé Lop.
Tua Maria chorou quatro vezes.
"Louvando a Maria
o povo fiel
a voz refletida
de São Gabriel
Ave, ave, ave Maria
Ave, ave, ave Maria"
A Maria não quer morrer,
me abraçou com força durante uma crise renal,
chorava, gritava,
não queria morrer. Não quer
E se ela morrer, meu Zé?
A vida,
esse país fudido - o capitalismo - tu traba
lhaste toda a vida, os dias todos.
os materias que chegaram corrosivos as tuas
mãos, suavizaste
hylé
os metais que não falam,
com eles conversaste,
bem disseste a areia,
a água,
as madeiras, os már
mores - bem disseste
a porcelana, o granito,
teu carrinho de mão
teu diamante
que cantava no vidro
a canção do amor...
enquanto isso assoviavas
quando a lama virou pedra e mandacaru secou...
nunca vi lágrimas nos teus olhos
nunca vi -
que grande saudade
de ti
Mestre José
os meus olhos estão cheios d'água
Quando a lama virou pedra
e nem deixaste a Paraíba - não viste as Minas Gerais
senão numa sonolência, um interstício,
qual era a tua terra
de onde partiste viag
em sem volta
Se eu tivesse um automóvel verde - Ginsberg -
Sandwiches of reality -
tu que não viajaste
fugiste de alguma volante
da secura da terra
da secura mesma
fugiste
foste, então, à feira
e trouxeste o carrinho cheio de bananas
poucos tomates
pouca alface
pouquíssima cebola
o carrinho cheio de bananas
teus olhos brilhando, uma criança que vê
um balão mixirica
um facho na noite e na cantiga
fogo
fogo-fátuo
bananas, bananas,
bananas
Emílio Garrastazu Medici,
Garrastazu
Garrafa azul
Vá para o inferno Emílio Garrastazu Médici -
que milagre era aquele, José ?
teu sono pesado numa caminha de campanha,
teu corpo num porão
tua família num porão,
os materiais da vida - a menina
quase loirinha, a menina
novinha,
as bonequinhas de pano
quantos beijos em tua filha, tua filhinha translúcida
pequenininha, a bonequinha
a cama de campanha,
umidade pelas paredes -
coração contido
voz baixa,
teu coração
taquicárdico,
teu coração continua -
vá para o inferno Emílio Garrastazu Medici.
Ouço nesta noite o som de todos os
trens
em que te comprimiste,
vejo
a cor de todas as madrugadas
em que imergias,
- pregão das vidas comuns -
mulheres fazendo café - café forte,
ouço o grito de todas as fábricas,
o nervosismo dos jornais radiofônicos,
o choro de todos os filhos assustados,
sinto, confuso, no perfume dessas damas-da-noite, o cheiro
do ferro queimado , roda contra trilho
numa estação de trem -
leio nesse silêncio estelar
a tua bíblia,
tua bíblia condensada -
Olhai os Lírios do campo
e olhavas,
os teus irmãos perderam-se, Zé,
por vários estados da federação.
E essas damas da noite, seu José,
esse cheiro
essa alucinação.
memória
do que era a noite
anterior ao dia
branco de um junho distante.
geada que cobria a horta
plantada
nos fundos do terreno da casa
no terreno vitalizado da casa de aluguel,
no terreno que era um campo,
onde havia uma plantação de milho
ou mandioca,
onde havia uma festa de cantador
de sanfoneiro,
de sanfona, de zabumba,
uma vila onde havia uma casa de farinha
e trabalhando os homens
olhavam para suas mulheres
trabalhando.
Que grande saudade de ti,
mestre José, trovador,
mestre carpina.
São Paulo do peixe podre
este era o nome da cidade da esperança -
onde se poderia trabalhar,
este era o nome da cidade
ou das cidades, que são tantas cheias de mentiras
que são tantas e devoram homens,
tua voz minúscula,teu acento,o registro agudo
dos que falam a tua língua,
faziamsoaronome,oanseio,
a alegria de quem pisou pela primeira vez
o solo da Kreisler do Brasil SA -
Gagarin
disse que não encontrou Deus,
não viu
nada além da terra azul,
enquanto isso caminhavas, sem dinheiro para pegar ônibus,
ou mesmo porque não houvesse sequer uma linha
que servisse o
bairro onde moravas,
quase mato
só o lugar, periferia, subúrbio,
cidade dormitório, alojamento,
moradia popular,
favela,
domingos de encher
laje, domingos de
sorrir e cantar.
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