quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

A FIGUEIRA ESTÉRIL

De toda sorte
parece
que de nada valeu a palavra 
anteriormente pronunciada
a seca palavra
a
bruma seca 
voz do Harmattan, o ilustre.
Nada.
Porque é tudo vaidade.
Tanto os homens quanto os deuses,
tanto um deus quanto um homem
padece sob a lâmina da fome,
mas há o tempo de plantar 
e o tempo 
de arrancar a planta
e há do fruto a estação
e há o tempo
intransigente
de quando a árvore nega
mesmo a um deus que suplica
e se prostra
de joelhos
e se, porventura,
e se, por sua ira,
amaldiçoa a planta
apenas nega, movimento duplo,
que se vista o homem
já, agora, miseravelmente, nu
e envergonhado.
 
David Sandum




terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

FRAGMENTA


Sobre esta rocha...
porque trazia trançados os cabelos
e [ ] envolvendo-os
laços de
fita de cor púrpura
e a beijava na boca,
segredos que só a ela revelava,
a depositária da mensagem [ ]
Kepha
[ ] 
Kephalè¨
Nunca houve
um túmulo em Éfeso
ma [ ]
onde o rio não é sempre o mesmo.
Estava já escuro ou era cedo escuro
antes do amanhecer
e trazia 
frascos de perfume em trêmulas
mãos
para [ ]
o corpo [ ] luz que se apaga
na medida em que [ ] 
espargindo óleos e unguentos
e não foi prometida ao apóstolo João
nem perguntou onde este apascentava
o seu rebanho
 - porque levaram o meu amado
e [ ] não sei onde o puseram -
e com ele esteve na aurora e
[ri] na crucificação
in angelus
o espírito da Sabedoria...

e ouviu:
que MARIA não fique entre nós
porque as mulheres não são dignas 
da vida ...[ ]
as muito amadas,
e esta que Raboni mais ama
sobre todas as coisas,
por isso lhe vieram dois
anjos - brancas asas - em sonho
para fermar suas lágrimas.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

SEXTO DOMINGO DO TEMPO COMUM

Messiaen amava profundamente os pássaros
amava mais os pássaros do que a música
celestial com que preenchia
as naves das catedrais,
esta mesma música
que se derrama e inunda
o meu peito cheio de dor
na manhã de um domingo, o sexto
deste tempo comum 
quando as estrelas se movem sem mistério
sem mistério nem salvação
a luz mística da manhã -
mística e não misteriosa -
mística e breve luz da manhã
deságua como se de água se tratasse
escorrendo pelos ladrilhos da nave central
do Mosteiro de São Bento.
Não sei por que razão, 
ou sei,
mas
agora
não vem ao caso,
você me perguntou das horas,
e eu esqueci de dizer
que
o tempo não se divide
senão que a necessidade de muito produzir
inaugurou nossa vida.
Pergunte ao camponês que semeava
seu campo
quando Jethro Tull ainda montava
um cavalinho de pau;
pergunte à fiandeira,
branca moça de olhos fundos,
a mirar na roda do tear
a ciranda dos dias e das noites
sem número 
e eles não saberiam
não saberiam dizer 
nem mesmo em que século viviam
e a trama do tempo
era feita da própria vida,
do cerzir cuidadosamente
ponto por ponto
a fim de não se conhecer a costura
a intrincada costura do tempo,
o ponto invisível.
Não que aquela vida
daquele século
ou de outro
fosse melhor do que esta
do que a vida em qualquer dia -
é tudo sempre tão espantoso -
A água da chuva que escorre da encosta
e perfura a pedra calcária,
criando esses incontornáveis
desfiladeiros;
os pelicanos e as gaivotas
espreitando
o barco que se aproxima da marina
ao final da auspiciosa pescaria. 
Exceto a espécie humana
somente os pássaros,
tão amados, se aventuram no ardor
da pimenta,
embora a percebam como um fruto doce. 
Soam os sinos estrondo e estanho
vibram os meus ossos
como as cordas de um instrumento impreciso
ou como os tubos de um órgão magnífico.
Há pouco eu nem existia nem tu também
daqui a pouco deixaremos 
de existir
e restará a paisagem e o silêncio,
o novelo das eras decomposto, 
o fio que se prende à eternidade.
 
Fragonard - O balanço

sábado, 9 de fevereiro de 2019

NÃO DIGO

mas constitui uma tirania o retirar-te
assim
como uma constelação que se apagasse de repente,
a música que deixou de soar, abrupta,
a corda partida do alaúde,
razão pela qual
tollendo tollens
também eu desapareço desfigurado
e a paisagem é a pele arrancada,
a carne viva, sua cor compondo a aurora.
Nem desço aos infernos portando uma lira,
ou os gonzos dos ossos descarnados,
a flauta entalhada na própria vértebra,
porque não posso enganar tantos demônios
e fúrias.
Uma fuga é o que se ouve
a fuga do sem nome
o nome do indizível
e tudo quanto existe girando em espiral
sou o corpo polifônico,
sonata,
scherzo.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

OS MENINOS

Os meninos sonham em ser grandes
e veem
maior do que o mundo seu tamanho,
maior,
as grandes planícies siberianas,
o mar de sal que cobre as montanhas andinas,
são maiores os meninos
homens colossais
a pular a poça d'água, o abissal
da fossa das Marianas, 
sonham os meninos seus pelos a crescer
cobrir o peito
uma espessa camada
o arvoredo, a noite no peito estampada;
alcançar os ventos
enrijecer-se
os incólumes
o destemor. Percorrer os becos escuros,
o negrume dos becos da cidade,
os becos escuros de uma mulher;
verter lágrimas
amar o interdito, 
plantar a semente do baobá,
voltar ao ventre
os meninos sonham 
basta a água infiltrar-se nas paredes,
o aço escorrer anterior ao aço
basta
a estrepitosa matilha acordar,
uma picada do escorpião,
o prego oxidado. Basta uma fagulha.
Meninos soltando Pipa - Candido Portinari