segunda-feira, 23 de novembro de 2020

NAVIO NEGREIRO II

Não há neste mundo navios carregados de sal
nem nas docas e nos estuários da terra uma sequer gota de sangue.
Eis que os algodoeiros são prodigiosos cultivadores de si mesmos
e os laranjais se precipitam sobre as bocas
sedentas,
da mesma forma como a cana é o seu próprio
engenho
e toda essa gente saudável e bem vestida
pode sair a dançar em salões revestidos
de ouro,
pois o ouro instituiu-se autômato
e dispensa mineiros,
assim como dispensou os navios negreiros
e flutuava lentamente sobre as águas do Atlântico,
apenas para adornar as paredes de alguma
piedosa igreja,
a fim de que mais belamente
fosse pregada a igualdade entre os homens.
Navio Negreiro - Di Cavalcanti

 

domingo, 15 de novembro de 2020

ELA, A QUEM AMEI IMPERFEITAMENTE

Ela, a quem amei imperfeitamente,
está, agora, mesmo que disso
não saiba
a povoar os sonhos em mim
de um amor irreparável.
Com ela falo, silente,
e sem resposta
das vozes silenciadas dentro de mim.
Eu que perscruto a noite e perscruto
o dia
hei, afinal e inexoravelmente,
de não ter nenhuma vontade
e nenhuma dúvida.
Por ora, como o leão atado à sua presa,
como o gnu
preso à sua sina,
eu a ouço ainda, agônico,
agora,
agora e para sempre.

Edward Munch - Separation

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

DÉBORA

Há deuses interditos e templos venais cheios de prostitutas 
e de ouro.
O teu vaticínio, Débora, é a tempestade, 
o caudal a encharcar o campo
e líquida a tua palavra,
assim como úmidos são os teus lábios e vermelhos.
Ramos de palmeira os cabelos, verdejante,
ao vento que dita sentenças nas montanhas de Efraim
A água, o vento, o fogo são teu deus imortal e invencível.
A natureza contra a arte, o artifício,
o metal contra a metalurgia.
Dizes também que o sono é irmão da morte
e esta é mulher de delicadas mãos, de suaves gestos.

Giacomo Amigoni


 

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

CLAREIRAS

Deléveis, as formas
imergem virgens, difusas.
É o geômetra,
perscrutando números,
não coisas,
é o iludido geômetra,
sôfrego, quem primeiro vê
o que não tem signo,
o que não se iluminou
e jazia
na fibra da terra,
tal como na fibra do olho.

 

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

DOR E MEDO E GELO E FOGO


Nem amargo nem doce - 
Há, tão somente, os átomos e o vazio;
a multicolorida face não
nem as constelações no carrossel da noite imensa.
Dor e medo e gelo e fogo - 
as coisas findas e seus contrários -
nem amor nem morte (desejo - falta ) 
e os parques e as parcas,
os porcos.
Em vez disso, apenas se pressupõe o movimento. 
Não há
a água no mar salgada nem os pastos, pradarias 
- a alma -
mistura mística que afirma-se piedosamente, talvez. 
Mas olha
nos teus olhos líquidos e verdes 
- teus cabelos tão belos -
olha, veja, as mãos que tocaram com ternura e força 
o teu corpo;
e a tristeza que meu coração despeja na corrente sanguínea.
Nada disso há e jamais se engane. 
Há os átomos e o vazio,
o vazio e os átomos.