sexta-feira, 22 de abril de 2016

BELA, RECATADA E DO LAR

Não é porque se deixe alegremente enrabar,
que caia, levante e novamente caia,
entre putas, bêbados e toda a miúda raia,
que ela não seja bela, recatada e do lar.
Que vá feliz e sestrosa de bar em bar,
que não negue a ninguém o que pedem para dar,
que ela, com a calcinha no rego enfiada,
não seja bela, do lar e recatada.
Que desaforo algum para casa não leve,
já que nem tudo pode ser justo e decente,
mormente o que a secular moral prescreve,
tudo o que não se pode ver num lupanar,
a inveja, o medo, a violência permanente,
sobre as que são belas, recatadas e do lar.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

GÓLGOTA


O templo não é um lugar; não é um mercado
onde os mercadores expõem, encharcados de sangue,
os braceletes femininos ainda em punhos cortados;
brincos pendentes de pedaços de carne.
Vê como de branco se pintou a planície,
com as montanhas de ossos deixados à intempérie,
aos vermes, às aves carniceiras.

Toda essa vastidão contempla o martirizado,
enquanto recita um salmo, a perquirir Iavé
por que?

O templo não é um corpo que padece,
nem o que foi mutilado pela espada,
cuja lâmina brilha como um sol de aço,
ou a serviço de uma companhia de extração de minério,
ou óleo;
as mulheres violadas e os homens arrastados,
no ofício do açúcar, no cultivo das doces frutas
que adornam os pratos de uma raça de corvos.

O templo não é o grito lancinante 
dos submetidos a toda espécie de tortura e sevícia,
esmagamentos, esfolas, ratos, choques elétricos,
chapas quentes, e a eliminação de gerações
inteiras, economia da fome, para que uma dama
se cubra de perfume, e higienize o hálito,
para o beijo, e  possa receber o dardo de seu senhor.

As ruas se cubram de macadâmia e ladrilhos enfeitem
as paredes de palácios e casas divididas por cômodos,
para o melhor deleite burguês, e para esconder das crianças
o sexo.

O templo.

Edward Munch - Golgota

segunda-feira, 11 de abril de 2016

ESTER

Nem mesmo a menor centelha divina se faz refletir
nesses cacos de porcelana, do que se partiu,
e, irremediavelmente, não se pode refazer.
Há, contudo, uma luz vespertina,
que cobre todos os prados dessa imensa Pérsia,
uma vaso mais brilhante e belo,
do cristal mais perfeito,
como essa estrela da tarde.
Os homens, Ester,  e seus destinos são 

não mais do que pequenos joguetes 
nas mãos dos deuses.
A gloriosa jornada, a fracassada campanha,
a rainha ausente e insubmissa, defenestrada,
evanescida;
o amor no coração dos homens,
vaidade, tão-somente.
O que maça e estiola, o que oprime e mata,
o que conduz ao sepulcro, o que retira da vala
comum e separa;
o cardamomo, a seda;
o teu rosto, Ester, que põe o rei genuflexo
e embriagado,
como um menino correndo pelos vales
onde crescem as cerejeiras.
A miserável servidão e a morte como a chuva
sobre os exércitos,
tudo como uns poucos pedaços de um prato
atirados ao chão.