segunda-feira, 14 de março de 2016

CORDÃO DE SÃO FRANCISCO

Para sempre eu te perdi, Lúcia,
para sempre.
Nunca se chega a esse lugar ermo e daqui nunca se sai.
Acredite, quase ninguém sabe o que é a pobreza,
e o que é lutar, desesperada e cotidianamente, 
sem nenhuma ajuda,
nem conhece as pardacentas cores
que permanecem inertes 
sobres essas quase ruas.
Ademais, 
nunca falamos sobre isso
mas digo,  
mesmo essas artes são coisas para o deleite burguês,
isto é, ouvir Mozart, por exemplo,
ou cultivar uma voz castiça,
uma escrita escorreita.
Você saberá que eu tive muito medo e que nós éramos infelizes
e que não tínhamos nada e não temos nada ainda hoje.
O pouco terreno conquistado, 
gleba de terra em país tão vasto,
os assentados maltrapilhos
a depender da defensoria pública, 
da caridade, inclusive;
ou partido que se incline.
Um único beijo como se fosse todo o amor possível,
exatamente na hora aguda da despedida,
depois daquelas horas entre um prato de comida e outro
bolinhas de papel,
jogos de advinhas,
esgoto a céu aberto,
o céu pleno das constelações.
Tudo se perdeu.
Não faço a menor questão de disputas,
quaestio disputatio,
a longa noite tão densa sobre os meus ombros,
e dentro dos olhos.
Incessantemente o meu coração bate
desde o dia em que percorri toda a extensão 
da Cordão de São Francisco,
as planícies desabitadas da minha alma.
Nonato Freitas - 1968