sábado, 2 de maio de 2015

O SERENO

Hoje eu sei o que é o sereno. Passei toda a noite (juro) sentado na calçada
olhando para um retrato teu. Confesso que fiz isso só para poder dizer que
passei toda a noite sentado na calçada olhando para o teu retrato. Não, 
não é pouco. Ademais, eu não podia simplesmente inventar uma história dessas. 
Que valor pode ter uma história inventada, afinal? E que amor pode existir
que não exija grandes aventuras? Não as de matar dragões e vencer
exércitos invencíveis, mas a de passar toda a noite sob o céu isento de estrelas; 
não as de por a correr os bichos mais ferozes, mas a de colher na boca 
o gosto da madrugada e no gosto da madrugada o gosto da boca de quem se ama. 
A grande, a imensa aventura de chorar sozinho enquanto a cidade dorme 
e escutar ao longe o apito tristonho do guarda-noturno; travar amizade 
com o meio-fio e compreender os sentimentos das pedras da rua, 
sorrir para elas e dizer-lhes “Olhem, esta é a minha querida, o meu bem, 
o meu anjo”.
Passei toda a noite sob o céu firmamento e recebi na minha face o sereno frio. 
Era um manto tão leve, leves mãos que me afagavam. Era a tua face sorrindo, 
os teus olhos que me guardavam, enquanto eu fitava no teu retrato 3 x 4 
a imensa beleza do mundo, a inominável paz da noite provinciana.
David Bellamy

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