terça-feira, 18 de junho de 2013

NAVIO NEGREIRO

Cedo, ainda muito cedo, com a noite vestida com seu manto azul, 
meu pai costumava me acordar com um leve pontapé nas costelas, 
eu que dormia no chão, em um colchãozinho.
Não, não há mágoas, há memórias. Há um desconsolo,

há o que tornou-me homem feito e que não gosta de acordar as crianças em sobressalto.
Sim, ferro contra ferro, o cheiro ácido das rodas do trem contra os trilhos na estação 

enevoada e escura. Caminho para o trabalho. O dia ainda vestido com o manto negro da noite.
O trem, como um grande navio negreiro, recolhia aflitos, 

da multidão de trabalhadores, os rostos, os sonolentos rostos e espantados.
Pais e filhos, mães e filhas. José, Maria, José. 

São muitos os grilhões, são muitas as cadeias. É preciso a libertação, sim. 
É preciso.
Há muito os navios cruzam os oceanos por causa do comércio: do café; 

do açúcar; do alho; do sal que salga a vida. É preciso um oceano de tempo. 
O meu pai tem o meu perdão.


terça-feira, 2 de abril de 2013

SANTA IFIGÊNIA

Há cidades escondidas e suspensas;
Os ladrilhos do viaduto já gastos pelo tempo e por tantos passos.
A chuva um tanto ácida.
Não, o mundo não é um vale de lágrimas,
muito embora seja preciso garimpar qualquer felicidade.
Há muito que já não sei andar só pelos caminhos,
por isso tomo tua mão e conduzo essa dança,
enquanto o cigarro queima eternamente.
Há instantes de ternura e medo,
memórias de um tempo incerto,
lembranças do que não fui,
e silêncios que perfuram a alma
como a árvore

cujas raízes romperam a calçada e o meio-fio. 
Jackson Pollock - Untitled (1953-1954)

quinta-feira, 21 de março de 2013

VIADUTO DO CHÁ

Dizia minha pobre mãe que o tempo muda de direção.
A infância que perdi. 
A juventude que também perdi;
o velho cão asmático.
Havia um riacho cheio de peixes translúcidos;
e a grama coberta pela geada.
O automóvel azul.
Eu guardei segredos, 
guardei moedas que já não tem valor.
O medo, o espasmo. 
O primeiro amor que nunca veio.
Curau de milho.
Chumbo derretido sobre a placa de zinco.
As casas inacabadas; 

pequenos prêmios em palitos de sorvete.
Surpresas e goiabas.
As palmeiras imperiais que indiferentes me fitam
quando cruzo o Viaduto do Chá,
no tempo em que o tempo muda de direção.


terça-feira, 5 de março de 2013

O CISNE NEGRO, O ORNITORRINCO, O RELÓGIO PARADO

O que não se apresenta de maneira habitual;
o que é incomum; o que é raro.
Isso, é o insólito. 
Pois que gosto do que é insólito.
Da casa azul subitamente vista na colina verdejante.
O morcego que rasante passa pelo quarto em silêncio.
O cisne negro, o ornitorrinco, o relógio parado.
No campo de flores vermelhas a cobrir a planície,
o lagarto, a ave de rapina, a cascavel que espreita um rato.




quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

METADE

Metade da obra não é a obra. 
metade 
É terem ficado os mares 
secos. 
metade 
do dia,  noite. 
metade 
do rio,  leito nulo, 
a asfixia das plantas. 
Metade 
do sexo,  
esterilidade. 
Metade 
É o filho dividido pela espada 
ninguém sendo mãe. 
Metade  
da vida, 
morte. 
Metade do mundo bebe leite, 
cresce, ama, se identifica, 
chora  
se comove, 
metade 
não se move. 
metade são cidades iluminadas 
                               perfeitas 
                                celestes, 
metade são tristezas 
                    lixeiras 
                    viveiros 
somálias áfricas américas 
                                   latinas.


quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A NATUREZA DA CHUVA


Esperamos pelas águas sagradas e profusas; nelas o próprio espírito de Deus 

pairava e não havia dia nem noite; esperamos pelas águas, 
pelo milagre do que é fluido, como fluida é a própria vida; 
esperamos pelas águas ternas e límpidas, 
pelo beijo da chuva, seu beijo prateado. Esperamos.

Esperamos pelas águas rasas e profundas; à beira mar, na beira rio, 

sob as pontes iluminadas a vapor e medo; esperamos pelas águas,
pelo tempo do que é belo e frágil; como bela e frágil é a própria vida; 
esperamos pelas águas frias e cáusticas, 
pelo canto da chuva, seu canto melismático. Esperamos.

Esperamos pelas águas calmas e profícuas; no ancoradouro, 

no Rio Amarelo, na aldeia, no Tigre e no Eufrates; 
esperamos pelas águas, pelo quase nada da vida, 
que é fluida como a própria chuva; esperamos pelas águas 
eternas e verdadeiras,
seu sussurro de águas, a revelar um segredo. Esperamos.